O que já é tradição no
cinema brasileiro são biografias de artistas que fizeram nome por gerações em
nossa terra, na maioria das vezes baseando-se em histórias repetidas inúmeras
vezes por vasta bibliografia acumulada pelos anos, e em se tratando de Renato
Russo, desde muito tempo objeto de estudo, estava mais do que na hora de ser
produzida uma obra que não fosse simplesmente documental sobre sua persona.
Para isso foi escalado Thiago Mendonça (o Luciano de 2 Filhos de Francisco)
para encarnar o ídolo numa ficcional cinebiografia tocada por Antonio Carlos da
Fontoura, que havia dirigido o péssimo Gatão de Meia Idade e roteirizado por
Marcos Bernstein (Central do Brasil) baseado numa das biografias famosas do
cantor. O filme já começa com o jovem Renato acometido por uma doença que o
deixa entrevado na cama numa era sem Internet e pouco antes do boom do rock
nacional a explodir em Brasília, fazendo o inteligente rapaz passar seus dias
lendo e escutando rock, sua paixão. Aos poucos vai aprofundando seus
conhecimentos por seu gênero musical predileto, descobrindo novas bandas e
acompanhando o surgimento do movimento punk que foi chegando com tudo pelo
mundo afora, sempre acompanhado de sua melhor amiga Ana (Laila Zaid, atriz que
fez fama em Malhação), que na verdade é um mix das amizades coloridas que
fizeram parte da juventude do rockstar, e amigos músicos futuros que ajudariam
a compor o cenário musical em Brasília da segunda metade dos anos 70 e início
dos 80, essencial para o rock nacional atual, com bandas que perduram até hoje.
Citação a bandas estrangeiras como a inglesa Sex Pistols famosa por trazer o
movimento punk para uma projeção mundial, não poderia deixar de existir. O
Renato de Thiago Mendonça carrega uma expressão caricata numa interpretação
preocupada em trazer para o papel todo seu maniqueísmo e comportamento peculiar
no modo de falar e agir, o que pode ter soado exagerado, mas nada que incomode,
sendo que para um filme feito para gerações antigas e atuais, que sequer
conheceram o artista vivo, o ´´personagem`` desperta empatia e sua projeção foi
muito bem humorada, e afinal, não é a concepção do artista que incomoda. O
roteiro, por si só, é totalmente enxuto e politicamente correto, a despeito do
que foi o filme do Cazuza, interessantíssimo objeto de estudo. Somos Tão Jovens
poderia facilmente ser confundido com Malhação, por exemplo, uma dramaturgia
preocupada sim em mostrar a trajetória do músico, mas igualmente preocupada em
jogar para baixo do tapete aspectos relevantes, mas obscuros, como envolvimento
com drogas pesadas, promiscuidade, depressão e a tentativa de suicídio de
Renato, fato que o deixou impossibilitado de continuar tocando baixo. A
bissexualidade do artista foi levemente arranhada e apesar de termos o
conhecimento de que a proposta do filme é apresentar sua trajetória só até o
momento em que sua banda em questão, Legião Urbana, deslancha para o sucesso,
devemos lembrar que foi seu comportamento promíscuo e sexualidade polivalente
irresponsável de longo prazo que o levou a adquirir a DST que lhe ceifaria a
vida em 1996. O Renato do filme é um bom filho, bom irmão e um original
professor de inglês, que de vez em quando dá uns ataques de rebeldia para cima
de seus pais, mas nada que o difere de um garoto normal. Mas é interessante ver
outros músicos originados na época retratados no filme, como o Dinho Ouro Preto
(Ibsen Perucci) e o que mais achei curioso, não necessariamente de maneira
positiva, o Herbert Vianna (Edu Morais), que mais parece uma paródia de
programa humorístico de tão caricato. Em suas aparições o personagem está
sempre deitado ou sentado, provavelmente para aproximá-lo de sua imagem de hoje
de forma bem humorada, caprichando no seu jeito peculiar de falar, gírias e
gestual, deixando a gente acreditando que nem o próprio levou na esportiva a
imitação, ops, a interpretação. Philippe Seabra, vocalista e guitarrista do
Plebe Rude, faz uma participação especial como o prefeito de Patos de Minas
cidade onde acontece o primeiro show do Legião. Agnaldo Timotéo, outro músico
da época, mas sem ligação com o movimento, também foi lembrado, de forma
depreciativa apesar de debochada.
Aborto
Elétrico
Aborto Elétrico foi a
primeira banda de Renato. Numa época em que ele ainda era Renato Manfredini Jr,
o jovem cheio de planos e pretensões artísticas conseguiu reunir um time
musical formado por Flávio Lemos (Daniel Passi) e pelo problemático e sensível
sul africano Petrus (Sérgio Dalcin), bem parecido com o roqueiro inglês Billy
Idol, o primeiro dos três a ter um fim pelo uso demasiado de drogas, tendo seu
distanciamento reduzido no filme por sua partida à sua terra para prestar
serviço militar obrigatório. Mais tarde, substituído por Fê Lemos (Bruno
Torres) o Power trio passa a tocar pelos festivais de rock da cidade
influenciando outros jovens a formarem grupos mesmo sem saberem tocar, pois
afinal de contas ´´para se ter uma banda punk não é preciso saber tocar``. O jovem
Renato que carregava música e poesia no sangue, influenciado pelas próprias
frases de efeito que proferia as transformando, mais tarde, em versos de composições
de sucesso, se desentendendo várias vezes com seus companheiros de banda, numa
delas totalmente arrasado pela morte de John Lennon, resolve se afastar e
seguir carreira solo, fazendo shows somente acompanhado de seu violão se
apresentando como O trovador Solitário, cantando futuras canções de sucesso
como Eduardo e Mônica e Faroeste Caboclo, sendo recebido com escárnio até
retomar suas atividades grupais. Aborto Elétrico se diluiu nos grupos Plebe
Rude e Capital Inicial e Renato conheceu os parceiros que o acompanhariam pelo
resto da vida, Marcelo Bonfá (Conrado Godoy), e Dado, interpretado pelo próprio
filho do músico, Nicolau Villa-Lobos, que tiveram participação curta aparecendo
lá no finalzinho da projeção, mas como parte do elenco não era composta por
atores e sim por músicos, inclusive o próprio Thiago cantou sem auxílio de
cantores profissionais, não faria mal substituir atuações rasas por canjas
musicais, a verdadeira essência da obra. Ter a sensação de testemunhar o
processo de criação de cada música e a opinião dos envolvidos, aliás, algumas
delas, já que a carreira do grupo é razoavelmente grande, é uma experiência
agradável até para quem não é fan.
Em suma, é um filme
para toda família e seu didatismo histórico apenas atesta isso. A direção de
arte é impecável, reproduz bem a ambientação dos anos 80 com capricho. Fiquemos
com essa generosa imagem do ídolo nacional, que nada tem de enganadora, talvez
protetoramente omissiva. Mas pudemos ter contato com o que de fato importava. E
já que o Renato está com essa corda toda, podemos acreditar de bom grado que
Faroeste Caboclo será, senão um filme que agrade gregos e troianos, pelo menos
uma nova obra prima do cinema nacional.
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